Se o mundo inteiro parasse agora, e todas as pessoas dentro dele parassem também, eu iria sair andando por aí. Roubaria um carro e iria para um museu. O museu imperial de Petrópolis seria perfeito.
Adentrar-me-ia nas dependências reais e me vestiria com um dos vestidos expostos. Entraria numa das carruagens e logo depois sairia, me tornando uma imperatriz cansada da longa viagem. Desceria os degraus do veículo, ajudada por um homem invisível, e me dirigiria ao escritório mais próximo. Nele, me sentaria à mesa de reuniões e teria uma enfadonha conversa de gabinete com todos os que jazem mortos.
- O que fazer com a falta de amor do povo, milady?
- Dê-os brioche!
Depois sairia usando só as roupas de baixo, pegaria meu carro e iria ás compras. Entraria numa casa qualquer que estivesse com a porta aberta e fosse bonita o bastante por fora. Os habitantes estáticos me olhariam com espanto e eu os imaginaria dizer:
- Absurdo dos absurdos! A Imperatriz está seminua!
Em troca, eu responderia:
-Vocês, criaturinhas vis e imaginárias, deem-me seus alimentos mais frescos.
Encontraria a cozinha e me abasteceria de cenouras, batatas, um pequeno pezinho de repolho, muitas maçãs, damascos e nozes (Ora, ora! Uma família bem abonada. Que sorte a minha). Voltaria abraçando tudo com certa dificuldade, agradeceria de todo coração os nojentos habitantes, guardaria as coisas no carro e assaltaria uma bela padaria.
Utilizando de um par de cenouras letais, subiria no balcão e diria à atendente que me vendesse a preços absurdos todos os pães e bolos mais suculentos.
- Vossa Majestade por acaso está fora de si? – Ela imaginariamente diria.
- Claro que não, ensaio de imbecilidade, não vê claramente qual é o meu plano? Entrei aqui assaltante, sairei daqui perfeita vítima.
Ela então, tomada por clareza, colocaria tudo de mais delicioso dentro de uma grande cesta. Eu, ainda em cima do balcão, roubaria astutamente uma balinha de café.
Com cesta em mãos e a balinha entre os dentes, sairia de lá me sentindo transtornada. Imaginem vocês, 8 reais por um pão de queijo de ontem.
Rapidamente picaria a mula de volta ao meu palácio. Mandaria as obedientes cozinheiras prepararem um delicioso cozido de legumes. Eu seria cada uma delas em turnos alternados e brigaria muito entre mim.
- Não sabes que deves tampar as panelas pra que a água dentro delas ferva mais rápido?
- Claro que sei, mas prefiro exercitar minha paciência.
Do outro lado da cozinha (é uma cozinha verdadeiramente grande essa):
- O que faz aí parada com essa colher de pau?
- Pretendia matar esta varejeira.
- Nada disso, vá logo avisar a majestosíssima imperatriz que o cozido está pronto.
Com tudo em ordem na cozinha, me dirigiria aos meus aposentos a fim de esperar que uma de minhas competentes cozinheiras me chamasse para a ceia.
Surpresa minha! Mal me deito e já escuto a batida na porta:
-Vossa Magnificência, o cozido está pronto.
Aprumada e devidamente calçada com um par de fabulosas pantufas felpudas quais os visitantes são obrigados a usar, sairia deslizando no soalho. Guiada pelo cheiro de comida, chegaria à mesa de jantar. Cumprimentaria toda a parentada insuportável e me escusaria por uns instantes (falha minha, esqueci de botar a mesa).
Me sentaria novamente, agora com a mesa posta, dizendo:
- Perdoem-me, estou um pouco indisposta.
- Onde estão suas roupas?
Era só o que me faltava, a tia imaginária mais insuportável resolveu dar-me o ar de sua graça.
- Não vê que é verão, velha medonha? Não me aguentava mais debaixo de tantas anáguas.
- Oh! Indolente ingrata! Me recuso a cear o mesmo que ti!
- Velha mal criada e cega! Não vês que teu prato não existe? Não há comida alguma aí! Nem mesmo estás a minha frente!
Ignorando a presença de todos os inexistentes, sairia marchando duro com meu delicioso prato de cozido em mãos. Sentar-me-ia no chão da sala de música e tomaria minha ceia fazendo barulho.
- “Shlrup” tomara que se engasgue, velha maldita “shlrup”!
Depois de ter me saciado, e sem que percebesse, cairia no sono ali mesmo no chão. Dormiria por horas a fio e teria os mais diversos sonhos e pesadelos. Por fim, acordaria à noitinha e me surpreenderia com as horas que se passaram sem que eu as visse passar.
Me sentaria de frente ao cravo e tentaria tocar uma sonata.
- Como são pesadas as teclas... E como magros são meus dedos...
Tentaria outra coisa no lugar, mas...:
- Oh, infelicidade minha. A harpa é demasiado grande para mim.
Desconsolada, sairia a passos largos até o jardim. Que beleza é um jardim à noite e oh! Quem eu vejo!
- Se não é o pior de meus inimigos!
- Se não é a mais bela de minhas inimigas!
- Marquês das Terras da Sanidade...
- Imperatriz Suprema da Corte...
Depois de breves cumprimentos e devidas reverências, começaríamos a travar uma violenta guerra de dedões. Longos minutos se passariam e no fim de minhas forças eu o venceria gloriosamente.
- Mais uma vez o venci!
- Sinto-me pisoteado por uma manada de elefantes...
- O convido para um chá, para que se possa recuperar as forças, e depois rogo para que não voltes mais a andar em minhas dependências.
- Sim, Vossa Benevolência.
Cansada e um pouco ferida da bravia luta, eu iria diretamente para um longo banho.
Graciosamente limpa e com novas roupas de baixo, demandaria que meu café da noite fosse servido na biblioteca onde eu estaria nas próximas horas. Sairia então correndo para a cozinha e seria novamente as cozinheiras competentes e imaginárias.
- Sirva uma poção de nozes com damascos nessa travessa. Ande já! A Imperatriz já está esperando!
- Não posso, sinto muito... a varejeira que tentei matar mais cedo chamou sua horda e encheu de vermes minhas mãos. Estou condenada a perder as duas!
- Pobre criança!
Todas nós ficaríamos desoladas e eu choraria de desespero por aquela pobre alma. Lentamente recuperaria o fôlego e levaria as travessas para a biblioteca imperial, assim como pedido.
- O café está servido, Vossa Majestade.
- Muito obrigada... O que aconteceu? Por que estás tão triste?
- É a criada, Minha Senhora. As moscas atacaram suas mãos e lhe encheram de vermes.
- Que tragédia!
E após pensar um pouco, teria uma ideia realmente genial:
- Tive uma ideia realmente genial!
- Sim, Vossa Majestade?
- Amputem as mãos da criada e lhe ponham no lugar uma pá e uma tesoura de jardinagem. De hoje em diante ela será chefe responsável pelo jardim.
- Vou correndo dar a boa nova, Vossa Benevolência! Garanto que a criada regozijar-se-á de tanta alegria.
Após a saída da criada, eu tomaria meu café e alcançaria o livro mais próximo. “Um Conto breve Sobre A Realidade”. Felicidade a minha, o livro se leria sozinho. Poderia continuar meu café sem precisar virar-lhe as páginas.
- Capítulo um: – diria ele – A história da menina biruta.
- Bom começo. – diria eu.
- Obrigado. – diria ele, e continuaria – Numa sala de estar de uma simples casa de classe média, se encontrava uma menina-moça que escrevinhava em seu aparelho computador.
- O que ela escrevinhava? – Eu perguntaria.
E então ele responderia:
- Ela escrevinhava seus pensamentos sobre como seria se o mundo inteiro parasse e só ela tivesse o poder de se mover.
- Não gosto dessa história, mude!
Mas ao fim de minha frase, eu perderia meus movimentos e o livro continuaria sua terrível falácia:
- Ela nem ao menos desconfiava que do lado de fora, uma equipe bem treinada de enfermeiros esperava o sinal do médico para que entrassem e lhe pusessem uma camisa de força.
- Maldito seja Marquês da Sanidade! Infiltrou um livro enfeitiçado em minha biblioteca! Pare! Por favor, eu peço que pare! Eu imploro que pare!
- Tarde demais, mocinha! – o livro diria e de dentro de suas páginas, grossas ataduras de algodão sairiam e prenderiam meus finos braços.
Não consigo lhes dizer mais o que acontece depois, amigos. Meus movimentos agora são limitados e, amaldiçoada que sou, mal consigo digitar o que penso.
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