Acéphale: um periódico intempestivo
"Acéphale foi um periódico sem periodicidade (em vez de aparecer quatro vezes por ano, como anunciado em sua capa, a revista apareceu quatro vezes ao longo de quatro anos); que a referência a Nietzsche lhe é fundamental; que foi um “interpreendimento” extremamente inoportuno, dotado, por isso mesmo, daquela foucaultiana atualidade que equivale, segundo Deleuze — em sua contraposição com o presente — à intempestividade (ou inatualidade, ou extemporaneidade, como queiras) nietzscheana. (...)
... Sendo, como foi, dirigida por Bataille na mesma época em que tratava de soldar a comunidade Acéphale[2], é de se esperar que a revista, ainda por cima homônima, estivesse atravessada pelas mesmas obsessões que o levaram à constituição daquela. É no entanto preciso que nos guardemos, com Michel Surya[3], de dizer, com Roger Caillois, que ela “en était l’organe”.
Quando muito, foi esse o caso do número I da revista (junho 36): La Conjuration Sacrée. Através dele, ficamos logo sabendo que “O que nós (Georges Ambrosino, Georges Bataille, Pièrre Klossowski e André Masson[4]) interpreendemos é uma guerra”. E é nele também que Bataille nos apresenta esse Anti-Deus chamado Acéphale:
Para além daquilo que sou, encontro um ser que me faz rir porque é sem cabeça, que me enche de angústia porque é feito de inocência e de crime: ele tem uma arma de ferro em sua mão esquerda, chamas semelhantes a um sacré-coeur em sua mão direita. Reúne numa mesma erupção o Nascimento e a Morte. Não é um homem. Não é tampouco um Deus. Ele não é eu mas é mais eu do que eu: seu ventre é o dédalo em que se desgarrou a si mesmo, me desgarra com ele e no qual me acho sendo ele, é dizer, monstro.[5]
Condiz ainda com essa função de “órgão exotérico” o textículo nomeado “L’Unité des Flammes” que expressa claramente a problemática vontade de comunhão que parece ter caracterizado a comunidade Acéphale:
… um sentimento da unidade comunial. Esse sentimento é aquele que prova um agrupamento humano quando aparece a si-mesmo como uma força intacta e completa; ele surge e se exalta nas festas e nas assembléias: um alto desejo de coesão o eleva então acima das oposições, dos isolamentos, das concorrências da vida diária e profana.[6] (...)
...Mas vale notar que embora tratando de uma espécie de comunhão, ou talvez antes de comunicação[8], não é de maneira alguma questão nesse texto de uma empresa comunitária. Esse estado é aqui alcançado através da imaginação erótica que escolhe os momentos de solidão e de espera do indivíduo — momentos em que o mundo e os seres estão ausentes — para invadir seu eu, [e que] corresponderia assim a uma tentativa inconsciente de recuperar todo o possível que deveio impossível pelo fato da tomada de consciência do eu — essa formação tendo permitido a realização do outro eu — logo a uma atividade de agressividade, em detrimento da realidade exterior, tendo por fim reaver sua integridade original.[9]
Soberania acéfala ou soberania sem soberano
Quando Bataille nos diz
A doutrina de Nietzsche não pode ser assujeitada.
Ela pode somente ser seguida. Colocá-la em seguida, ao serviço de que quer que seja de outro é uma traição que releva do desprezo dos lobos pelos cães,[19]
podemos ver aí talvez resquícios de uma subjetividade soberana na imagem mussetiana do desprezo do lobo (que se recusa, ainda que isso lhe custe a própria morte por inanição, a servir o pastor) pelo cão que se sujeita, se deixa asservir (e ainda quer convencer o lobo a fazê-lo também). Resquícios presentes também no retrato que faz Nietzsche de um Heráclito absolutamente fier, diamantinamente satisfeito de si mesmo, verdadeiro “astro sem atmosfera”.[20] (...)
Confirmam essa visão da soberania como algo (ou antes como nada[23]) necessariamente sem sujeito algumas outras proposições sobre a morte de Deus: aquela (n. 7), por exemplo, que postula o tempo como “objet d’extase”[24], ou aquela (n. 10) que diz que “A Revolução não deve ser considerada somente em seus sustentáculos e resultados (tenants et aboutissants) abertamente conhecidos e conscientes mas na sua aparência bruta, seja ela o feito dos puritanos, dos enciclopedistas, dos marxistas ou dos anarquistas” mas “como a explosão súbita de sublevações sem limites”.[25] Vale dizer, não importa seu sujeito, mas a revolução como acontecimento soberano em que “a autoridade não pertence mais a Deus mas ao tempo cuja exuberância livre mete os reis à morte, ao tempo encarnado hoje no tumulto explosivo dos povos”[26] (e não, jamais, de jeito nenhum, num desses povos[27]).
A maravilhosa Kinderland
Contra duas (pelo menos) formas de construir um sujeito (de destruir portanto a chance da soberania) Acéphale se insurge: a que o funda na consciência (solução da gauche rationaliste) e a que o funda no sangue, na hereditariedade da raça[28] (solução da droite fasciste): “Os desencadeados do passado são os encadeados à razão, aqueles que não encadeia a razão são os escravos do passado”.[29] ...
...A essas duas formas de pôr um fim ao rio heraclitiano[30] da história — represando-o ora no que se diz ser sua nascente, ora no que se diz ser sua foz — Acéphale, como já disse, se “parapõe” (sempre com Nietzsche) como uma terceira margem: não se trata nem de restaurar a velha Vaterland nem de edificar uma nova, mas de festejar a Kinderland:
Uma Kinderland que não é uma Vaterland ideal mas uma ausência de Vaterland no sentido implicado por Nietzsche quando se declarou (e ao resto de nós) sem-pátria [Heimatlosen], em outras palavras, sem passado, sem pai, sem herança. De um pai desconhecido: Os sem-estado são de fato os filhos do futuro, em outras palavras, os filhos, precisamente, do desconhecido.
Dionysos
Se alguma dúvida restava quanto à impossibilidade de se fazer da soberania o predicado de um sujeito qualquer, o número duplo 3-4 de Acéphale, em que este aparece transfigurado em Dionysos, vem solapá-la de vez: a soberania tem parte ligada com a desindividuação, com o êxtase. (...)
Resta dizer
que ainda que o projeto de uma comunidade denominada Acéphale tenha aí ficado pregado na cruz, o “tema” da acefalidade não deixou jamais de ser crucial para Bataille. Pelo contrário. Como diria G. H.: “A desistência é uma revelação”. Ou parafraseando Bataille em sua resposta a Andre Masson sobre o que achava de dada: “pas assez idiot”[49], digamos que o projeto de comunidade de Acéphale era por sua vez pas assez acéphale.
Acéfala pois será l’expérience interieure (que só se dá justamente quando perdemos a cabeça), acéfala a economia geral proposta em La part Maudite (fundada na despesa, na descapitalização), acéfala a soberania que como já vimos só tem lugar na ausência de tudo aquilo que a cabeça representa enquanto principio de redução à unidade (Deus, chefe, pátria, razão…)
Assim como o olho pineal, o acéfalo representa essa insistência, essa exigência da abertura sem reservas do pensamento (mesmo que ele nela se dissolva) à experiência-limite dos limites através da qual vem, continua a vir, sem nunca se estabelecer, a “comunidade daqueles que não têm comunidade”.
http://www.cce.ufsc.br/~nelic/Boletim_de_Pesquisa5/texto_fernando.htm
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14.10.06
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