James Hillman
Este ensaio foi pela primeira vez apresentado em Milão na Conferência "Presente e Herança Cultural" que comemorava o 25° aniversário da morte de C. G. Jung, no Centro Italiano di Psicologia Analitica, em 1987. Está publicado na revista SPHINX 1/1988, Londres, Inglaterra.
Tradução de Gustavo Barcellos
Durante os funerais de Jung na Igreja Reformista Suíça em Kusnacht, o pastor descreveu aquele que ali se homenageava como um herege. É sobre essa face herética de Jung e seu legado para nossa cultura que gostaria de refletir neste ensaio. E, para essa reflexão, vamos olhar histórica e hereticamente para os primeiros trabalhos de Jung na virada do século.
Entre dezembro de 1900 e 1909, Jung trabalhou e viveu no hospital psiquiátrico de Burghoelzli, primeiramente como residente e depois como chefe-assistente. Ele era um membro praticante da Anstaltpsychiatrie, aquele estilo e método de atendimento que implica em uma intensa participação e observação diárias dos pacientes, típica do século XIX, um método que resultou no diagnóstico diferencial que a psicopatologia continua a empregar hoje em dia. Ele era, aparentemente, um membro efetivo do grupo.
Foi lá, durante uma das conferências internas habituais, que ele resenhou A Interpretação dos Sonhos, de Freud, livro o qual Jung foi um dos primeiros e únicos leitores. Apenas 351 cópias do Die Traumdeutung foram vendidas nos seis primeiros anos após sua publicação. Quer seja pelo estímulo de Bleuler, ou por sua própria vontade, Jung tinha o olhar voltado para idéias radicais, heréticas.
Durante esse período, entre os vinte e os trinta e poucos anos de Jung, o Burghoelzli era o lugar para quem tinha um intenso interesse pelas associações mentais. A noção empírica da mente, derivada originalmente de Aristóteles e depois Locke, Hume e Jeremy Bentham em nosso tempo, afirmava que os eventos mentais poderiam ser modelados em cadeias de associações. As leis dessas cadeias tornaram-se domínio da psicologia, tornou-se, em larga escala, a Psicologia, particularmente depois que ela foi aperfeiçoada nos experimentos e teorias do século XIX, primeiramente por Francis Galton e depois por Wundt.
Galton, que era primo de Darwin, ao tempo do nascimento de Jung já havia elaborado uma lista de palavras e medido o tempo de suas próprias associações a elas. E Thomas Brown, de Edinburgo, antes ainda no mesmo século, já havia investigado diferenças individuais nas associações, elaborando algo em torno de nove ou dez leis sobre como e porque idéias evocam outras idéias. A tarefa no Burghoelzli era entrar na mente do paciente através das associações, já que elas, dizia Bleuler, "eram o caminho para se compreender o homem completo”.
Jung virou de cabeça para baixo a coisa toda. Ele fazia novas e heréticas perguntas. Não perguntava que caminhos seguem as associações, nem como e porque funcionam. Em vez disso: como, porque e quando a associação não funciona. Não quais eram suas leis, mas o que as perturbava. Ele voltou-se para o estranho, o anormal, o patologizado. A questão, colocada nos termos do "o que" perturba as associações, implica um "o que", algo "outro", um bloqueio ou interferência, um ímpeto interveniente para além da inércia de um idiota ou da resistência voluntária de um beócio. Um "o que", um "algo", um "outro" mais forte que as próprias leis das associações. Ele não apenas tinha divisado um método experimental para a investigação do inconsciente freudiano; tinha também reimaginado o ser humano como um locus de complexos semi-autônomos, que depois descreveu como daimones, espíritos, kobolds, pequena gente e Deuses.
Claro Jung já havia feito algo semelhante em outro grande trabalho de seus primeiros anos, sua tese de doutorado. No parágrafo de abertura, Jung focaliza seu interesse em "certos estados de consciência”. Ele investiga "fenômenos ocultos”. Numa dissertação médica! Muito estranho. Não uma patografia no sentido comum, um estudo neurológico à la Freud, mas uma patografia dos espíritos; espiritismo. Um estudo não de Helena, ou Frau S. W. como foi chamada, mas sim um estudo sobre o "o que" perturba a atenção usual, um estudo sobre os "outros”, as vozes, figuras e ideações que falavam através de Frau S. W.
Em sua dissertação Jung apresenta uma idéia fundamental que é a idéia fundamental de minhas observações aqui: "o caso não muito comum” , como diz Jung, é para onde se olhar na busca de "uma riqueza de observações interessantes”. O insight é ganho a partir daquilo que ele chama de "inferioridade psicopática”. Esses casos estranhos, diz Jung já no começo de sua tese escrita quando ele tinha 23 ou 24 anos, apontam para algo mais do que meramente uma relação analógica com a psicologia da normalidade. Aqui Jung afirma uma característica metodológica, também compartilhada por Freud e básica a toda a psicologia profunda (ou seja, a psicologia não-humanista, não-transcendental). Começamos com o anômalo, o estranho, o excepcional. Esse método foi muito sucintamente colocado por Edgar Wind: "o lugar comum pode ser entendido como uma redução do excepcional, mas o excepcional não pode ser entendido ao amplificarmos o lugar comum… o excepcional é crucial porque introduz… a categoria mais ampla”.
Sim, ocultismo e espiritismo eram temas comuns e apreciados no começo do século. Também os experimentos de associação. Mas Jung deu ao espiritismo uma virada herética — não por reduzi-lo medicamente à inferioridade psicopática, isto é, a personalidade de Frau S. W., sua desordem e seu tratamento, tentando curar eliminando as outras vozes e figuras. A virada herética estava mais em tomar os outros mais seriamente, dando suporte a suas ideações, substancializando-os e a suas intenções e traços com analogias literárias e históricas. Novamente, seu olhar radical estava pousado nesses daimones e sua relativa autonomia. Ele foi ao encontro da radical independência dos "outros" com a radical independência de suas próprias idéias. Ao invés de reduzi-los a seus constructos mentais, ele expandiu seus constructos mentais por causa deles.
Esses dois exemplos do olhar de Jung para o estranho antecipam sua idéia posterior essencial de personalidade: a idéia da individuação. "A personalidade," como Jung a define, "é a suprema realização da idiossincrasia inata de um ser vivo" (Collected Works 17, §289). O caminho rumo à realização dessa idiossincrasia inata, ou "individuação," Jung define como um "processo de diferenciação" (CW 6, §757). "Diferenciação," declara ele, "significa o desenvolvimento das diferenças, a separação das partes do todo" (CW 6, §705). Não é a totalidade que define a individuação, mas a separação das partes: complexos das funções, projeções das realidades, o individual do coletivo, imagens-de-Deus dos Deuses e o metafórico do metafísico. (CW 11, §835-36; CW 13, §73-75). "Diferenciação significa o desenvolvimento das diferenças," diz Jung. Diferenciação dá a sensação da diferença, a sensação de ser diferente, de diferirmo-nos de nós mesmos e dos outros, de sermos estranhos. Ele até mesmo caracteriza diferenciação como "isolamento" e diz que é o sine qua non da consciência diferenciada. (CW 13, §395) "A individuação é o tornar-se aquilo que não é o ego... aquilo que você não é... Você se sente como se fosse um estranho" (SPRING 75, p. 31). A neurose, que nos aparta fazendo-nos sentir agudamente diferentes, torna-se uma culpa beata pois é a primeira manifestação de isolamento e de heresia. O radicalismo começa na não-adaptação, aquele não-conformismo ou anormalidade da idiossincrasia. A própria autonomia dos sintomas no sofrimento neurótico que não pode ser suprimida, não pode ser extraída e nem aceita — essa autonomia das partes, que experimentamos como sintomas — é a primeira evidência de diferenciação radical. A neurose torna-se o sine qua non da individuação. Individuação e patologizar são inseparáveis, tanto na teoria quanto na existência.
Já que o olhar de Jung era assim tão atraído pelo idiossincrático, quer seja no fato experimental ou no sofrimento clínico, ele foi forçado a procurar por modos mais amplos de compreensão normativa, tais como tipos e arquétipos. Tipos e arquétipos podem generalizar anomalias. De fato, ambos têm maneiras de abarcar o aspecto patologizado dos fenômenos: os primeiros como "função inferior," os segundos como universali fantastici (Vico), ou seja, personificações míticas repletas de exageros. Contudo, uma vez que ninguém é sempre típico e nenhum fenômeno sempre apenas arquetípico, esses agrupamentos mais amplos sempre desconsideram a particularidade e devem se submeter eventualmente à prioridade da individualidade.
Exatamente aqui a idéa junguiana de Self torna-se teoricamente crucial. Ela resolve este problema entre universais monotéticos e individualidades idiossincráticas pois, mesmo que a noção de Self afirme um princípio formal abstrato em funcionamento em todos os seres humanos ao mesmo tempo, ela insiste na idiossincrasia de cada existência. Sempre que a peculiaridade única do Self em qualquer indivíduo dá lugar a símbolos, emoções ou formulações estereotipados, temos a grande patologia do sistema de Jung: a possessão ou identificação com o Self, ou seja, a psicose. Para dizê-lo mais radicalmente, somente a peculiaridade individualizada de nossas psicopatologias nos protege contra a loucura maior. Somos salvos por nossas anomalias ou, como o disse Jung frequentemente, nós não curamos nossos sintomas, eles nos curam.
As analogias religiosas que Jung emprega — Cristo nascido numa manjedoura, o lapis como materia vilis, o ouro no estrume, a pedra que os construtores rejeitaram — expressam o profundo protesto, o profundo protestantismo que se anunciou nos horrendos e heréticos sonhos de infância com o monstro fálico e o monte de excremento sobre a igreja. Podemos falar de "radicalismo congênito," um impulso daimônico dado com sua natureza? Ao menos digamos que ele foi forçado num caminho diferente, um caminho que exigiu dele fazer de sua real idiossincrasia e abandono pelo "pai" a virtude abrangente que ele chamou de "individuação." Mas individuação não é uma idealizada completude centralizante ou totalidade. "Eu não acredito que tal centro (Self) exista," disse numa entrevista a Miguel Serrano. Nem a individuação é atingida por incrementos de desenvolvimento. Em vez, a individuação é a realização da idiossincrasia inata, da diferença inata. Ela não aparece no futuro fictício do envelhecimento. Ela aparece fenomenicamente, em qualquer momento estranho de diferença. A individuação ocorre sempre que normas e hátitos usuais do sujeito são deslocados. Somos vítimas da individuação, não seus patrocinadores.
O olhar de Jung para o estranho recolheu e iluminou fenômenos inusuais um atrás do outro: misticismo tibetano muito antes dos vagabundos do dharma; Zen muito antes de Alan Watts; a sabedoria trickster dos índios americanos antes de Castañeda e Rothenberg; alquimia, parapsicologia e atrologia antes destas serem absorvidas pelos viajantes da Nova Era; a psique da física teórica muito antes de Capra; I Ching antes dos biscoitinhos da sorte; a ressurreição do feminino antes das feministas; a natureza da consciência africana antes de van der Post; o colapso do Cristianismo coletivo antes das filosofias do Deus-está-morto e da teologia do pós holocausto. Ele inspirou os Alcoólatras Anônimos; foi um dos primeiros a dar testemunho do poder do mito como uma realidade viva em funcionamento em ilusões coletivas tais como o Nacional Socialismo e os discos voadores. E muito antes que Timothy Leary e Ram Dass tomassem suas formas humanas ele já havia escrito sobre o fator tóxico nas condições psíquicas bizarras, ou estados alterados, da psicose.
Não é de espantar que Jung tenha virado um Santo da Nova Era aparecendo, já no começo dos anos sessenta, entre os ícones na capa de um disco dos Beatles.
Mas esses tópicos — sincronicidade, a psique geográfica e racial, ilusões políticas, zen — não são a herança. A fantasia profética aquariana não é a herança. Sejamos bem claros. Não as palavras; mas os verbos e advérbios. Não o campo; mas seu arado. Não o que ele viu; mas como ele viu. Não a lua; mas o inquisitivo e torto dedo que a aponta. Acreditar que avançar a psicologia de Jung ainda mais no inconsciente é avançar esses tópicos, é arar os mesmos sulcos profundos e colher uma safra mais rala. Pior, trata-se do literalismo errado. Pois o inconsciente não reside nos campos onde ele o encontrou. O inconsciente toma a si mesmo bem literalmente: busca permanecer inconsciente, portanto ele sempre escapa. "A natureza ama se ocultar," disse Heráclito. Assumir que os campos que Jung explorou são hoje as explorações do inconsciente é ficar preso no tempo, como os fãs de Rudolf Steiner vestindo-se na moda pré-primeira-guerra, como os freudianos ortodoxos com suas barbas e divãs, ou os hippies ainda usando suas faixas na cabeça e sandálias dos anos sessenta. Entre nós junguianos esse erro de identificar o inconsciente com seus campos aparece nas preocupações com o mal, com mandalas pintadas, ou com insultar ou revificar o Cristianismo. Demonstrar a tipologia com evidências estatísticas, usar imaginação ativa como uma técnica com guias espirituais, revestir a cultura com o 'feminino,' com a sombra ou Mercúrio — esses encargos dos herdeiros de Jung com os quais, ao menos, eles não o trocam por Kohut, Klein, Grof ou Lacan — são tentativas de seguir o mestre que não seguem o mestre. Em vez, eles fazem ego onde havia id. Eles seguem Freud, a abordagem modernista, positivista e psicodinâmica, ampliando o âmbito do conhecimento ao incrementarem a ambição da razão conceitual. Didática. Seguidores podem ser razoáveis e aceitáveis; Jung só podia ser escandaloso e radical.
Digo tudo isso tão diretamente, com ironia retórica, porque temos apenas vinte e cinco minutos, tempo para um sermão, uma argumentação persuasiva que balance e deixe uma impressão emocional. Meu estilo almeja o próprio discurso de heresia que estou propondo. Voei o oceano, cruzei os Alpes para dizer isso.
E o que estou propondo como herança tem que ser afirmado num jeito negativo e irônico; a opus contra o familiar e natural. O radicalmente renovador não vai com a maré, mesmo quando aparentemente o tópico é um evento contemporâneo. Em 1936 Jung escreveu seu ensaio sobre Wotan. Muito significativo que ele tenha se pronunciado sobre a Alemanha e o Nacional Socialismo. Extraordinária foi sua percepção de que o mito estava ativo ali no meio da política, como esteve em Atenas, Roma e na Europa de Joana d'Arc e Cola di Rienzi. Os poderes arquetípicos não se mostram apenas nos livros simbólicos, nas religiões exóticas e nos consultórios. Eles se apoderam das ruas, da mídia, do campo de guerra. Ou, ainda como um outro exemplo: quando em 1950 a Igreja proclamou a doutrina da Assunção de Maria e a teologia de Jung parecia reconhecida por aquela retificação da trindade como o quarto feminino, sua teologia era radical, não porque era atemporal e profética, não porque o conteúdo supria um background teológico para o feminismo; era radical porque Jung arriscava-se numa teologia psicológica contra a reificação da Igreja de Pedro, contra noções ridículas de salvação através de um Jesus inofensivo.
E, quando a isso seguiu-se o escandaloso livro sobre Jó, lá estava mais uma vez a heresia — não meramente em função da teologia literal em suas proposições sobre uma figura de Deus inadequada e inconsciente precisando tornar-se humana; o homem como o salvador de Deus. Não; o escândalo mais verdadeiro estava na iconoclasia, o desfacelamento da tão querida e inviolável imagem de Deus ocidental. Jung havia deslocado o maior de todos os grandes temas. Novamente, o jeito de trabalhar, não o trabalho; o distúrbio, não a nova doutrina; o agon romântico de Jó e Jung, não o solidificado troféu que coroa a luta. É esse Jung biográfico, Jung do falo monstruoso e da igreja defecada que dá aquela carga paternal vitalizante à imagem de Jung na psique contemporânea.
Se não mantivermos a imago de Jung dessa maneira, Jung como um terrorista psicológico, um pós-moderno sempre deslocando o esperado, tremendo as bases, sua imagem esmaece num retrato da senilidade sábia, um membro do clube da história sentado em sua poltrona, mais um rei de cabelos brancos nas torres da cultura européia; e esquecemos das figuras heréticas e apaixonadas entre as quais ele está e por quem ele foi fascinado: Abelardo, Paracelso, Freud, von der Flue, os gnósticos e os alquimistas, Nietszche.
Portanto estou tentando nos afastar da noção de que a herança cultural de Jung está literalmente nos campos que ele abriu, e assim retornei a tais tópicos tediosos como experimentos de associação convencionais e sua tese acadêmica para salientar o estranho dom de Jung e seu legado à cultura: seu "deslocar o usual."
Deslocar o tema usual — este é o escândalo, a heresia; e é aí que Jung — arcaísta, patriarca, arqui-conservador — é radical no real sentido da palavra. Radical porque vai de volta aos radices, as raízes, os archai. Esses archai revertem adaptações híbridas e convenções coletivas a algo mais velho, profundo e mais essencial. Essas raízes não se conformam. As raízes protestam contra acomodações. As raízes atravessam qualquer camada de enxerto, qualquer expectativa, insistindo em torcer o seu jeito pelos caminhos abertos para elas. Para estarem certas têm que desviar. Eu uso a metáfora das "raízes;" Jung falou do "inconsciente arquetípico." E era, como ainda é, chegar às raízes do sofrimento, do sofrimento inconsciente, do sofrimento do inconsciente, das raízes, a preocupação da terapia radical.
Onde está o inconsciente hoje? Onde sofrem as raízes? Onde estão enterradas as faíscas de Sofia na escuridão de nosso mundo presente? Dar atenção a elas é a terapia junguiana da cultura.
O inconsciente hoje reside não apenas nos pacientes burgueses que estão, eles mesmos, tão frequentemente engajados na mesma profissão terapêutica, não apenas nos sonhos e nos relacionamentos, e dificilmente nas insignificantes e tramadas agonias da transferência, o bovarismo de Flaubert agora reescrito como a psicodinâmica do narcisismo. Sofia sofre hoje em nossas cidades, em nossa tecnologia, em nossas instituições e nossa política paranóica, essas furiosas superestruturas egoístas que perderam suas raízes elementais nos archai; e Sofia sofre nos padrões de produção, distribuição, consumo e lixo, nas coisas comuns do dia-a-dia que nos cercam neuroticamente chamando nossa atenção, com suas formas desmoralizadas, falsas personas e sua tendência para o colapso. O daimônico vive menos em nossos sonhos e mais em nossos dias, nossa inércia moral e exaustão anestesiada. O inconsciente se rebela em nosso mundo maníaco, não na sincronicidade, na sexualidade, nas deusas, na primeira infância e no transcendentalismo trivial. O inconsciente está onde sempre está, nas bordas da consciência, entrelaçado à consciência, onde não olhamos ou não queremos ver. Está no meio de nós. Estamos imersos na psique. Como insistiram os alquimistas, o ouro da possibilidade está no lixo horrendo mais próximo de nós.
A tarefa de trabalharmos a materia prima do inconsciente real sempre foi aquela do artista que não expressa meramente seu sofrimento, mas que reflete o tormento da anima mundi, o sofrimento das raízes. Por artista quero dizer o artesão, quer seja, artista, alquimista ou analista — aquele que toma nas mãos a madeira abandonada, os sons cacofônicos, os pedaços de bricolage e retorna essa insconsciência a suas raízes. O artesão trabalha através da anima rumo à anima mundi.
E assim, para concluir, a abordagem herética de Jung precisa ser renomeada. Afinal, ela assim foi chamada por um pastor dentro do contexto religioso de um funeral. Mas aquilo a que o pastor se referiu não é nada mais do que a visão das artes desde Giotto, Dante e Vitruvius; aquela visão daimônica que desloca o usual ao revertê-lo a seu archai. O mesmíssimo ato que esfacela o ícone familiar anuncia sua importância daimônica, elevando a imagem ao lugar primeiro.
Se a visão de Jung é semelhante àquela do artesão e sua vida conforma-se ao dever e destino do artista — apesar dos protestos de Jung, apesar de suas atitudes anti-estéticas, apesar de seu imenso e continuado compromisso com a religião — ainda assim este é o legado que ele deixa à cultura e é também sua terapia. Se sua visão é comparável com a do artista, então o trabalho da terapia também deve ser concebido ou imaginado como um empreendimento artístico, a reversão da medicina para sua arte, assim como a política para sua arte, o planejamento das cidades, o serviço social, a indústria, a educação — cada um como um trabalho com as raízes que sofrem. Cada um como uma tentativa de fazer alma a partir da inconsciência. Cada um uma tentativa de individuação do coletivamente dado. Cada ato da luta diária levemente em conflito com a luta diária, deslocando o usual, libertando a imagem cativa e aliviando o sofrimento de Sofia na matéria. Cada movimento sempre radical, subversivo, particularmente subversivo às noções confortáveis da psicoterapia usual, psicoterapia como usual, e sempre uma raiva contra a cega harmonia de uma vida anestesiada. Em vez, uma vida em meio ao notável, ao estranho, ao patologizado; os machucados e descontentes, em paz somente num mar revolto.
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