por Ivan Hegenberg
Logo depois de publicar meu artigo sobre essa figura imprevisível, nosso maior terrorista poético, me surpreendi com uma entrada em seu blog que a princípio daria a entender que ele passou por uma alteração brusca em sua maneira de pensar, Dinheiro como Deus: Uma mudança na percepção do dinheiro enquanto valor.
Nos comentários, as reações variaram ente "Alguma coisa mudou nesse blog" e "O Ari endoidou". Um tanto doido ele sempre foi, afinal apanhar sistematicamente de seguranças ao desafiar shopping centers, igrejas e outros redutos do consumismo e da moral não é um comportamento dos mais comuns. No entanto, todas as ações descritas em seu Manual Prático de delinqüencia juvenil, por mais inusitadas e polêmicas que sejam, transmitem uma análise sobre o poder bem mais lúcida do que a que o stablishment tenta nos vender. Há pelo menos dois anos eu acompanho o blog de Ari Almeida, e, por mais porra-louca que ele seja, me convenceu de ser alguém que sonha com um mundo mais livre. Trata-se de um neo-anarquista, leitor de Hakim Bey, Foucault e Deleuze, capaz de escancarar as contradições do sistema capitalista em ações criativas, que, a meu ver, se parecem um pouco com o que vem ocorrendo na atual "arte engajada", porém com uma contundência muito maior. No mínimo me parecem mais sinceras, como vocês podem conferir na resenha que escrevi para o Casulo, disponível logo abaixo.
Confesso que me senti um tanto culpado no dia do lançamento do Casulo. Não por defender alguém tão radical, mas, pelo contrário, por no mesmo dia ter me apresentado em um espaço patrocinado por um banco, o Itaú Cultural. Se nosso Delinqüente está nesse exato momento confundindo todos que o tomam como um herói do combate ao sistema, eu, apesar de não ter um currículo como o dele, fui tão contraditório quanto. Ao mesmo tempo que eu elogiava um terrorista poético que exorcisava bancos, "lugares do mal" como ele diz, minha arte estava à disposição do Itaú, o que de certa forma agrega valor à instituição. No mundinho das artes prospera uma militância ferrenha, um povo tão obsecado pelo ideal de uma arte imune ao mercantilismo que já não consegue olhar para obra nenhuma, apenas para os veículos em que ela aparece. Eu já escrevi muitas vezes que essa ala mais crítica, que conseguiu estabelecer o pensamento dominante em artes plásticas, nunca foi coerente, apenas faz barulho mas não age de acordo com o que prega. De qualquer modo, mais parecia uma brincadeira do destino que, no dia primeiro deste mês, eu estivesse ao mesmo tempo lançando um texto quase inofensivo em um banco e outro texto, combativo, que criticava não só os bancos como todos os perpetuadores da lógica selvagem do capitalismo.
Vou tentar dar conta aqui dessas contradições, tanto as minhas quanto as do Ari. No texto mais recente de seu blog, pela primeira vez ele fez algo como um elogio sem pudores ao dinheiro. Uma coisa surpreendente, vinda de alguém que colocou meninos de rua em um shopping, atacou a fábrica da Renault, e dispara afirmações como "a generosidade não tem vez no mercado global". Por outro lado, jamais notamos em Ari uma posição comprometida com qualquer militãncia tradicional. Pelo contrário, ele deixou claro muitas vezes que não se orientava por uma Revolução, mas pelos levantes, pelos breves momentos de liberdade - o que Hakim Bey chamaria de TAZ (Zona Autônoma Temporária) e Deleuze de linhas de fuga. Uma coisa que me atraiu nesses discursos foi constatar que seus inimigos são os mesmos que os meus: o pensamento único, a realidade consensual. Pensar que o inimigo seria simplesmente "o capitalismo" apenas nos faria patinar na lama, já que não se trata de algo tão monolítico quanto se pode imaginar. Além disso, por mais que simpatizemos com ideais igualitários, não acreditamos que as pessoas já tenham uma mentalidade à altura de uma sociedade anarquista. Talvez jamais venham a ter, e ainda assim considero o terrorismo poético uma arma das mais interessantes nessa luta. Não é a luta de quem pretende uma tomada de poder, mas de quem anseia pela expansão do senso crítico. E o terrorismo poético não é a única arma, mas uma das mais sedutoras, porque pega as pessoas desprevenidas, convida-as para a reflexão usando métodos heterodoxos, diante dos quais ninguém tem um escudo pronto.
Uso aqui o "nós" porque as posições coincidem em muitos pontos, não porque somos um movimento. Contudo, o que nos interessa é a liberdade, um ideal muito mais verdadeiro que a "bondade", coisa que a rigor sequer existe - para quem tem dúvidas, que leia um pouco de Nietzsche, e entenda por a + b que a bondade é uma ficção. A propagação de qualquer ideologia baseada em imperativos categóricos só pode mobilizar através de uma nova forma de domínio, o que não deixa de ser bastante limitador. Nossa ética, por sua vez, tem uma presença imanente: é a constatação de que a liberdade individual entra em choque com a mentalidade do capitalismo avançado, por mais individualista que seja esse sistema. A competição exarcebada, a decorrente violência, os desejos inculcados artificialmente pela publicidade... não vamos entrar em detalhes em um texto curto, mas o caso é que tudo isso tende a diminuir a potência do indivíduo e a qualidade de sua vida, mesmo que na aparência seja o contrário. Porém, a contradição está dos dois lados, tanto à esquerda quanto à direita. Afinal, que liberdade seria essa em que, para questionar os abusos do poder, uma vontade autêntica (de gastar um pouco de dinheiro) tivesse que ser duramente reprimida? Não se pode ser dogmático, não se pode insistir que o consumo traga somente a infelicidade, nenhum ideal vai muito longe apoiado em sofismas. Por esse motivo não condeno Ari quando diz que não devemos rejeitar o dinheiro, apenas ter uma relação mais saudável com ele. Em uma de suas tiradas, ele disse algo com que só posso concordar: "Não estou falando de não comer, estou falando de mastigar antes de engolir. Estou falando de sentir o gosto da parada a tempo de cuspir fora se for uma merda. Ou pior: veneno. Enfim, senso crítico."
Ari está aposentado como terrorista poético. Aquela fase de sua vida ao menos rendeu seu Manual Prático da delinqüencia Juvenil, que me anima por se tratar de um convite à reflexão acessível a qualquer adolescente esperto. É preciso algo mais cativante do que panfletos para conquistar quem poderia muito bem se encerrar no egoísmo, e nesse ponto o Ari é prato cheio para os jovens. A linguagem dele é a linguagem das ruas, sua ironia questiona e diverte ao mesmo tempo e suas aventuras são demonstrações práticas de que o melhor da vida não está nas promessas do status quo. Não é um livro que ensina como derrubar o sistema, mas ensina a não abaixar a cabeça.
Ainda assim, para mim está bastante claro que a delinqüencia só pode mesmo ser juvenil, não é aconselhável para quem começa a ter rugas na cara. Tanto é verdade que o novo herói de Ari é George Soros, um dos maiores especuladores de todos os tempos. Ainda assim, Soros não é simplesmente um "porco capitalista". Também é um homem excêntrico, que alimenta associações de esquerda das mais atuantes e a defesa de programas polêmicos, tais como a legalização do aborto. Eu nunca duvidei que pode haver coerência entre subversão e acumulação de capital, não só pelo exemplo do Soros, que realmente incomoda os conservadores, como pelo exemplo de Asger Jorn, um pouco mais caro para mim. Asger Jorn foi um pintor expresssionista do grupo COBRA, que pintou seguindo seu desejo, sem se render aos preceitos sufocantes da arte engajada. Ele pintou telas que eram prazerosas tanto para ele quanto para o público, abusou das brechas do sistema, ganhou dinheiro, deve ter gasto com algumas regalias porque ninguém é de ferro, mas uma generosa parte dessa renda foi para Guy Debord e os situacionistas. Com isso, a atuação dele rendeu muito mais frutos na expansão do senso crítico do que os lamentos exangües da atual arte engajada, que nada tem de livre, nem de prazerosa, nem de contundente. Também por isso não me interessa a anti-arte, já que toda grande obra, mesmo quando formalista e apolítica, contribui para uma mentalidade mais elástica. Um bom artista sabe despertar no espectador a sensação de que a vida pode ser intensa, que pode ir um pouco além do materialismo. Eis porque vejo mais coerência em defender tanto o terrorismo poético quanto a arte erudita, cada uma em seu campo de atuação, do que diluir uma coisa na outra e chegar a uma "arte engajada" que pouco mais consegue do que assumir uma séria crise de identidade.
Obs: uma ou outra pessoa chegou a pensar que eu sou o Ari Almeida ou que ele é uma ficção minha. É bom esclarecer que não moramos na mesma cidade e tampouco nos conhecemos pessoalmente. Aliás, somente por dedução posso afirmar que ele não é fictício. São poucas as pistas que ele deixou quanto à veracidade de suas ações, mas algumas delas são suficientes para supor que, por mais fantástico que pareça, ele pôs em prática as ousadias relatadas em seu livro.
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13.12.07
Ari Almeida, Dinheiro, Múltiplas Identidades...
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2 comentários:
Taí um texto que consegue ser bastante presente, mesmo sendo presente. Hehe, é que as vezes as pessoas do presente vivem muito no passado.
Cambiahoooohihicroned
Pshihicroned.: Tudo bem que ninguém é de ferro, mas pq permitir isso? Tem uma frase legal do templo XFod: Embrace discomfort.
Pshihicroned2.: CAMBIAHOOOOOOhihicroned
Toda a polêmica que foi criada sobre esse texto me conduziu à pergunta: porque diabos continuar fazendo distinções entre liberais, socialistas, nacionalistas e marxistas? No final das contas, analisando toda a convergência de pensamentos existentes no 'sistemão', a situação que temos é uma onde as 'frações' se parecem fragmentos do quadro geral. Cada coisa em seu lugar, como órgãos funcionando direitinho, mantendo tudo equilibrado.
Não é a toa que algumas pessoas, como Bob Black, sabiamente chamam a atenção para o detalhe: o marxismo é atualmente a forma mais elaborada do capital pensar sobre si mesmo, sendo essencial seu estudo em cursos de economia, administração, dentre muitos outros. Levando em conta que Marx era burguês, e que quase a totalidade dos primeiros socialistas eram burgueses... bem... então o socialismo é ideologia burguesa, já que raramente o trabalhador bota a mão na pena para teorizar junto aos acadêmicos.
Se toda essa lógica (capital girando, 'trabalhadores' exigindo direitos, o povão consumindo o que produz) só mantém o equilíbrio, parece o momento ideal de favorecer práticas desequilibradas. Não perguntemos como - inventar e reinventar sempre é bom.
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