por Valter A. Rodrigues
- Este texto surgiu-me em novembro de
1996, após assistir à peça Drácula e outros Vampiros, de Antunes Filho
(montagem pelo CPT, Sesc-Consolação, São Paulo). No dia seguinte à
apresentação, encontrei-me com o polêmico diretor e conversamos durante
horas sobre seu trabalho de formação de atores, que visa, sobretudo,
formar seres humanos integrais, plenos em sua expressividade. No
decorrer dos anos, voltei várias vezes a este texto, fiz pequenas
alterações e aproximações a Espinosa, Sade, Nietzsche, Deleuze, até
chegar à forma atual.
Parte 1: DA VÍTIMA E SEU SENHOR …ou senhores
Vítimas
não falam. Não é que lhes falte a voz: sua fala não se efetiva senão
numa débil demanda ao senhor. Demanda que é sempre de reconhecimento,
que é sempre um frágil pedido de amor.
Pois vítimas não amam.
Falta-lhes
a potência de fazerem-se amantes, falta-lhes o movimento, a
expressividade que transmitiria ao outro um corpo que se vitaliza ao se
“apresentar”.
Por não poderem dar materialidade à sua expressão,
esperam do outro, suposto seu senhor, essa materialidade. É então desde
o corpo do outro que buscam, passiva e demandantemente, sua
via. Daí permanecerem em seu desejo de ser amadas, buscando figurar a si
mesmas como objeto desse desejo que sempre lhes falta, que sempre lhes
escapa.
Quando falam, sempre entre iguais, isto é, sempre entre
outras vítimas, jamais perante o senhor, sua fala busca nomear isso que
lhes falta, e as estratégias que permitiriam, finalmente, sua conquista
de um contorno.
Entre si, chegam a reconhecer-se fortes, uma
força que inevitavelmente fracassa ao se encontrarem em uma nova
“presentação” ao senhor, com seu suposto fortalecimento antecipado. O
que parecia sólido se desfaz, por mais pensados tenham sido os gestos,
por mais medidas as palavras. Tropeçam em si mesmas, fazem de si mesmas
sua própria armadilha, a inevitável armadilha de todo aquele que, em sua
impotência, só demanda.
Não potencializando seu desejo, a
vítima é sempre capturada em uma sedução, da qual sua demanda é suporte.
O que a faz capturável é uma esperança e uma promessa: a de
transmissão, pelo outro, de uma potência, o que jamais se realiza, salvo
como efêmero, salvo como ilusão, salvo como alegria fugaz.
Trata-se,
no entanto, menos de uma recusa ou de uma falha daquele que é demandado
(embora isso possa também acontecer), e mais de uma impossibilidade da
vítima. Referida ao senhor, e só a ele, a vítima compõe seus gestos e
suas palavras a partir de um sistema de equivalências das quais só pode
reconhecer efeitos, jamais causas.
Obedece, mas não serve.
E o que supõe ser ação é, em toda sua extensão, pura resposta previsível, pura reação.
Por
não possuir os códigos, os assimila, assim, por espelhamento, por
estereotipia, sendo sempre em um exterior que irá buscar, nos códigos a
que recorre, sua própria eficácia. A especularidade é sua sina. E ali
onde ela pensa ter realizado uma conquista, o que encontra é sempre uma
anterioridade, uma assimilação, a evidência de uma inocente artimanha
destinada a fracassar.
O senhor, suposto portador do código,
só pode divertir-se e, pacientemente, demonstrar, com sua ação, a
ineficácia da estratégia, que irá reverter a seu favor, devolvendo a
vítima à sua própria condição. O fracasso da vítima é, assim, sempre a
Prevalência (e em alguns casos, também a exasperação) do senhor. É
sempre ela que “o confirma” na posição da qual supunha poder deslocá-lo,
e o exige enquanto tal.
O fracasso da vítima no confronto direto
com o senhor produz para este seu regojizo; [também algumas vezes
desconfortável, amargo regojizo]. Assim, mesmo quando não deseja
ameaçar, o senhor simula sua presença como uma ameaça, exatamente o que a
vítima deseja. É assim que o senhor dispensa seu amor: jogando o jogo
da vítima e fazendo-a jogar o seu jogo. Nesse jogo o senhor só faz
fortalecer-se, jogando sua vítima no remoinho das repetições que a
cristalizam em sua posição e garantem-lhe sua discursividade
reiterativa.
É essa discursividade, que lhe escapa – ela jamais
fala, é antes falada –, que a leva a supor-se conquistando um
conhecimento que a retiraria para uma outra posição: a de senhor. Mas
essa posição, efetivamente, ela não a deseja, por supor que perderia a
única terra em que pode representar-se enquanto sendo.
Ser vítima é seu destino.
Se
não há saída para a vítima, senão sua própria reiteração enquanto
vítima, até a morte, essa não-saída resulta, entretanto, de um Duplo
Equívoco:
Amarrada definitivamente à figura do senhor, todo
seu projeto e seu movimento apontam para um porvir: um dever-ser, um
vir-a-ser que só pode figurar-se como sua mais cara utopia: - tornar-se,
um dia, o senhor. É por projetar-se para um futuro impossível e
irrealizável que ela se sujeita.
Faz, enfim, a única coisa que
aprendeu a ser, “não se apreendendo” em seus próprios devires. Alheia ao
acontecimento, não reconhece em si os próprios gestos que espera que o
outro reconheça. Mais: não reconhece do outro os gestos, senão enquanto
sujeitadores dos seus. Assim, aspira a uma soberania, sem fazer de si
mesma um corpo-língua soberano.
Aparentemente está voltada
para o exterior, mas não o faz numa conexão com esse exterior, mas
tão-somente enquanto certeza antecipada daquilo que “lhe vem” do
exterior. É no medo, é no horror – e na atração – a isso que pode tomá-la, que ela “se dá” forma. Este é o gozo da vítima.
Na fragilidade de quem demanda, a vítima, portanto, continuamente supõe um senhor. Mas exatamente por não reconhecer senão
suas formas de captura, o que se indiferencia para ela é o próprio senhor.
No extremo, o senhor, para a vítima, é, enquanto possibilidade, todo e qualquer outro.
E
quem, afinal, é o senhor? Com certeza, não é um sujeito, um sujeito
específico. Não se trata, para reconhecermos um senhor, de buscarmos
aquele que detém o poder.
O verdadeiro senhor, o senhor real e
efetivo, seria aquele que recusa e ao mesmo tempo joga ludicamente com o
poder, não o que se faz ávido ou escravo dele, pois
o senhor escravo do próprio poder é, também, uma vítima.
O
verdadeiro senhor, para ser senhor, deve ser livre. Se ele precisa do
poder que lhe é externo, que lhe vem do reconhecimento que a vítima faz
dele, precisará sempre da vítima para confirmar-se, e acaba se tornando
escravo do que comanda.
Um mundo sem vítimas… seria sua derrocada.
II. DA VÍTIMA E SEU VAMPIRO
Por ter se tornado imprescindível à existência da vítima, a figura do senhor
é uma construção da própria vítima. Talvez esteja fundada aí sua
representação vampírica, como aquele que está para além da morte, que
emerge da escuridão e carrega consigo o mal. Longe de ser o maior
terror, é esse mal seu maior pólo de atração. Destruidor, em primeiro
lugar, possibilidade de ultrapassagem dos limites estreitos da vítima,
em segundo, ele é figurado como a mais temida e a mais desejada de todas
as forças.
O vampiro é a maneira como a vítima representa sua
possibilidade de liberação, sua possibilidade de consciência, sua paixão
de tornar-se outro. Mas, como toda paixão, ela não lhe é consciente.
Emerge de um fundo que a excede, daí a força da sedução que a
captura.Representação romântica do século XIX (resgatada de arquétipos
anteriores, transculturais), quando o desejo foi poderosamente
submergido sob a ordem disciplinar do universo da razão masculina, em
particular o desejo do outro sexo – que é sempre a mulher – a figura do
Vampiro foi convocada a responder ao apelo da feminidade negada, tanto
no homem como na mulher, como aquele que invade, que se apropria, que
destrói ou que transforma sua vítima em seu semelhante, por assimilação
da vítima a ele. Transgressor, fazedor da própria lei, o Vampiro abre a
possibilidade, no imaginário da vítima, de escapar à lei do desejo que a
conforma. Tornar-se também fazedora da própria lei, eis o projeto da
vítima, seu sonho, sua utopia. Sua perversão.
De uma demanda de amor à própria afirmação de si como amante, pode a vítima realizar esse passe?
Ora,
se a vítima não ama, se não tem a potência de amar, poderia ela
construir para si um senhor capaz de amá-la? Como poderia, o que não
ama, conceber um amante para si? O que a vítima pode conceber, em sua
posição de vítima, é aquele que irá se “apropriar dela”, de sua vida,
seduzindo-a, “não” o que irá amá-la. E, por essa limitação, ali onde ela
sonha sua Liberdade, acaba por eleger, no outro, seu Tirano.
Protegendo-se de se reconhecer enquanto desejante, canta a “glória” de
seu suposto libertador, delegando a ele seu sentido, sua ação, que só
seriam efetivos se lhe fossem próprios.
Eis o risco de todas as
revoluções, individuais ou coletivas, postas no porvir e nas imagens
ideais de poder e potência de um líder: a emergência de microfascismos. A
cristalização da vítima, o aprisionamento do imaginário e não sua
liberação.
O senhor sonhado pela vítima não é, assim, aquele que a
afeta e a contamina com sua potência. Ele está, antes, contaminado
dela, de suademanda, de sua impossibilidade. Como pensá-lo, então, senão
como Tirano, senão como “modelizado” pelos referentes que a vítima
retira do mundo como ela o vê [o mundo]?
Por isso, um mundo
aderido às figuras e estratos de poder a que os sujeitos devem aceder – e
neles permanecer – para realizarem sua condição de potência é um mundo
onde só há vítimas, pois aquele que ocupa o lugar do poder, o de senhor,
está permanentemente ameaçado de ter revertida sua posição, perdendo
sua potência de ação. Daí sua aderência ao que pode significá-lo. E a
aderência da vítima ao que lhe permite reconhecê-lo. Essa é a ameaça
totalitária dos desejos de ultrapassagem e de superação do si-mesmo que
concebem um pólo de convergência/referência “fora de si” para sua
realização.
Seria ingênuo, entretanto, conceber um mundo “sem” vítimas, logo, “sem” senhores?
Ou um outro, em que “todos” seriam senhores?
Uma comunidade, enfim, em que todos seriam livres? Um mundo de Seres Humanos, de homens integrais?
Esse mundo, reiteram as razões e as evidências do mundo, é utópico.
Mas
é necessário AFIRMAR , Sempre e Sempre, essa utopia como Virtualidade,
não do amanhã, mas do Agora, pois é nela que afirmamos nossa potência e
encontramos o motor de nossas ações. Paradoxal, talvez, desejante do
impossível, por que não?
A verdadeira democracia, um coletivo de
múltiplos, afinal, é também uma virtualidade pela qual e para a qual
somos convocados a trabalhar (e não a lutar por).
Jamais um porvir (daí a inutilidade da luta), SEMPRE um devir (daí o trabalho permanente por sua efetividade).
Um
mundo de senhores, um mundo de iguais, cada um em sua diferença e com a
própria potência como seu único poder, para ser concebido em sua
virtualidade, … exige um outro olhar, uma outra Positividade, de
forma que a apreensão das relações não seja dada só por oposição ou por
complementaridade ou disjunção (senhor/escravo,ativo/passivo,
masculino/feminino, forte/fraco, escuro/luminoso,bem/mal…), por
composição unitária, mas principalemente por Simetria, por Mutação, por
Processualidade, por Diversidade, por Diferença, por Multiplicidade, por
Conectividade.
Uma Revolução dos Espíritos, cujo motor ético
exige, por se significar pelo olhar, uma nova assunção estética. Um novo
coletivo, o da multidão.
III. DA ARTE COMO DESTRUIÇÃO DA VÍTIMA
Dos modos expressivos do contemporâneo, a arte é a que melhor consegue transformar em positividade o discurso da vítima.
Daí,
talvez, o poder de atração que ela exerce para aqueles que, em sua
precariedade perante os poderes, não encontram lugar para sua voz.
A
essa voz sem lugar, desterritorializada, a arte da língua. Uma língua
que, em relação aos poderes, está em posição continuada de
extraterritorialidade.
O poder, enquanto garantidor não de uma
diferença, mas de uma desigualdade, é sempre conservador de si mesmo,
jamais criador de um campo novo. Contrariamente ao que poderíamos supor,
o poder não cria língua. Toma para si uma língua já dada, fazendo dela
seu universal, pois, por sua condição de “instituído”, ele jamais poderá
ser “instituinte” sem o risco de dissolver-se enquanto poder. Assim,
onde algo pode ser reconhecido como instituído, manifesta-se o poder em
seu caráter conservador.
Daí o fracasso das ideologias em seus esforços de criar mundo, fazendo fracassar junto as utopias nelas e por elas sustentadas.
A
arte, ao criar formas de apresentação e expressão do mundo, abre, com
sua permanente reinvenção estética, as possibilidades de o imaginário
exercer-se, significar-se, reconhecer-se, criar mundo.
Daí que,
consistentemente, ela invista a “destruição da vítima” no homem-artista
(que não é só o criador, mas também o que se coloca perante a obra em
afetação com seus fluxos, suas linhas, seus campos abertos à imaginação
criadora, ao próprio devir de uma subjetividade-artista). Como nos
indica Deleuze, uma continuada guerra de guerrilha, não contra os
poderes que nos são externos (contra eles o artista é impotente no
confronto, embora possa ser lúdico nas negociações), mas… contra os
poderes em SI MESMO.
fonte: anoitan
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