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22.7.08

O Funk do Golfe

por Pedro Ivo Resende

Subi a Rocinha no meu carrinho elétrico. Além de uma bolsa de tacos, carregava comigo o intuito filantrópico de ensinar crianças carentes da favela a jogar golfe. Assim que cheguei lá, um sujeito me abordou:

- O que faz por aqui?
- Vim transformar a vida das crianças carentes.
- Me leva contigo então.
- Veja bem, eu acho que não vai dar. Você já não é mais criança.
- Mas sou carente.

Senti uma pena mortal do camarada e o acomodei no banco da frente. Pedi para ele dar um nome de mulher à bolsa de tacos e abraçá-la. O sujeito me fitou com um olhar de medo e a gente não tocou mais nesse assunto.

Passamos a nos ocupar em procurar menores abandonados. Subimos e descemos ladeiras, dobramos esquinas. Comprei duas latas de cola de sapateiro, pus em frente a um fliperama e fiquei esperando uns quarenta minutos. Nada de criança carente. Até que tive um estalo: elas só poderiam estar no colégio. Voltei pro meu carrinho de golfe e dirigi até a escola pública mais próxima. Pulei o muro, junto com meu novo amigo, e invadi uma sala de aula. A professora estava no meio de um problema matemático quando eu entrei gritando na sala:

- Quem quer aprender a jogar golfe!?

A turma toda foi tomada pelo silêncio. Após alguns instantes, um garotinho levantou timidamente o braço no fundo da sala.

- Ei, garoto. É, você mesmo, com o braço levantado. Não vai dar, viu?
- Por que, tio?
- Porque, bem... Deixa eu te explicar uma coisa: crianças em cadeira de rodas não jogam golfe. Fica pra próxima, campeão.

O guri abaixou a cabeça e chorou. Anos depois ele se tornou um cineasta de sucesso, foi premiado em Gramado e me mandou tomar no cu na entrega do Kikito. Minha mãe tem isso gravado em VHS. Mas voltemos à sala de aula. O garoto estava chorando, blá blá blá, e eu aproveitei a deixa para conversar com outro amiguinho.

- Qual o seu nome, garoto?
- Lucas.
- Tá. Me conta uma coisa, Lucas: você gosta de matemática?
- Sim.
- Conhece algum matemático que tenha namorado uma modelo famosa?
- Não.
- Me conta uma coisa, Lucas: você gosta de matemática?
- Não.

Os pirralhos se entreolharam e começaram a ficar inquietos, perturbados. Um menino investiu a lixeira contra a janela, estilhaçando o vidro. O guri da cadeira de rodas ateou fogo numa carteira e saiu, à toda velocidade, pelo corredor. Uma garotinha enfiou o dedo na garganta e vomitou no canto da sala. Era uma cena assustadora. Tive medo e fui conversar com o Lucas.

- Tá vendo? Isso tudo é culpa sua, garoto.
- Não, tio. Eles sempre fazem isso antes do recreio.
- Ah, tudo bem...

Olhei para trás e percebi que a professora desaparecera, deixando escrito no quadro negro uma equação: "Golfe x T + P + M = Quero que vocês todos morram". Apaguei aquilo e escrevi o telefone lá de casa. Quem sabe dia desses ela não me liga? Mas tudo bem, a criançada já estava descendo pro recreio e a gente podia finalmente ir embora.

A turma estava toda reunida no pátio. Mesmo assim eu sentia que faltava alguma coisa. Parei, sentei num banco e fiquei ali pensando, matutando. Pensei pra cacete. Descobri como criar um mundo melhor a partir uma nova forma de energia limpa. Mas bosta, não era isso. Precisava saber o que estava faltando ali... Continuei pensando até que, eureca, me lembrei: a bolsa de golfe, a porra da bolsa de golfe! Deixei ela com o sujeito carente, que havia sumido. Larguei a petizada por lá mesmo e rodei a escola atrás dele. Encontrei-o numa aula de Estudos Sociais.

- Sujeito carente, vamos embora daqui! Tava te procurando feito um louco.
- E eu também, mas agora eu me encontrei. Vou começar uma nova vida, aprender uma profissão, ser alguém.
- Tá bom, tá bom. Só me passa aquela bolsa com os tacos, ok?
- Bolsa não. Ela tem nome: Maria Fernanda.

Peguei os tacos e voltei pro pátio. Os guris estavam dispersos, espalhados. Tentei chamá-los para jogar golfe, mas ninguém me deu muita atenção. Nisso eu me lembrei de um velho método piagetiano.

- Aê, cambada de saco-liso, quem quer comer no McDonald´s?

Em poucos segundos toda a garotada parou o que estava fazendo e compôs uma fila indiana, organizada por ordem alfabética. Atravessamos a rua e fomos para o McDonald´s mais próximo. Quando entramos na lanchonete, eu tirei do bolso um pacote de cream-cracker e distribuí para as crianças, que não entenderam o que estava se passando.

- Vamos lá, vocês não queriam comer aqui? Engole logo isso, caceta, a gente não tem o dia todo.

Entre choros e protestos, fomos para a favela. Subimos até um plano descampado, onde eu abri a bolsa com os tacos e já ia me preparando para ensinar as minhas primeiras lições. Só que esse garoto, esse bostinha, apareceu do nada e começou a andar em volta de mim, pulando e cantando.

- "Dança, dançá, a dança do golfiiii!"
- O que é isso? Um funk?
- "Dança, dançá, a dança do golfiiii!"
- Ei, ei, menino, para com essa porra. É golfê, caceta, com "ê" no final.
- "Tu vai tomá de ar-quinziii se não dançá, dançá, a dança do golfiii"
- Olha aí, moleque: se não parar com isso, eu jogo você na lagoa e te atropelo de pedalinho. Tô avisando.

E o que era apenas um garoto virou uma massa funkeira. Primeiro foi a pirralhada engrossando o coro, mas depois os próprios moradores começaram a aparecer para ver o que estava acontecendo. Alguns batiam palmas e balançavam a cabeça, mas quase todos eles dançavam a dança do golfi, dando voltas em torno de mim. Daí vieram os instrumentos, o cheiro de feijoada e um repórter da rádio comunitária. O céu escurecendo, eu ali com vontade de ir ao banheiro e sem poder sair daquela roda. A única coisa que podia fazer era me arrepender. Me arrepender de ter inventado esse pretexto babaca de ensinar golfe na favela. Porque da próxima vez em que eu precisar comprar maconha para dar de Natal pra vovó, eu subo o morro e vou direto à boca.

Um comentário:

Cachaça disse...

lindo!